"Cada libro, cada tomo que ves tiene alma. El alma de quien lo escribió y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con el (...) Los libros son espejos: sólo se ven en ellos lo que uno ya lleva dentro"

(Carlos Ruiz Zafón, La sombra del viento)

sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago (1922 - 2010)

Foto: Sebastião Salgado

Retrato do poeta quando jovem
(José Saramago)
 


Há na memória um rio onde navegam 
Os barcos da infância, em arcadas 
De ramos inquietos que despregam 
Sobre as águas as folhas recurvadas. 

Há um bater de remos compassado 
No silêncio da lisa madrugada, 
Ondas brancas se afastam para o lado 
Com o rumor da seda amarrotada. 

Há um nascer do sol no sítio exacto, 
À hora que mais conta duma vida, 
Um acordar dos olhos e do tacto, 
Um ansiar de sede inextinguida. 

Há um retrato de água e de quebranto 
Que do fundo rompeu desta memória, 
E tudo quanto é rio abre no canto 
Que conta do retrato a velha história. 


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)


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Poema à boca fechada
(José Saramago)

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição) 

Um comentário:

  1. Sabe, Ag... graças a você eu acabei de ter meu primeiro contato com textos do Saramago... sim, eu sei. Eu devo ler.

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