"Cada libro, cada tomo que ves tiene alma. El alma de quien lo escribió y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con el (...) Los libros son espejos: sólo se ven en ellos lo que uno ya lleva dentro"

(Carlos Ruiz Zafón, La sombra del viento)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Ana Maria Machado e a palavra mágica...

Entrei em contato com esse texto de Ana Maria Machado no  segundo ano do ensino médio e nunca consegui esquecer do que senti quando o li pela primeira vez. Lamento ter tido que transcrever todo e criar com isso um enorme post, mas ele não está em nenhum lugar da internet. 
Em nome do amor pelas palavras e pela leitura trago o texto exatamente como está na minha folha de redação do segundo ano. 
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PALAVRA MÁGICA: TULUTATULÊ
Ana Maria Machado

Além da dor de perder alguém muito precioso, com a morte de Paulo Freire me veio também à lembrança o momento em que pela primeira vez ouvi falar dele e trabalhei diretamente com o método que criou. Foi pouco antes do golpe de 1964. O ministro da Educação de Base era Paulo de Tarso, eu era estudante e, como tantos outros, participava do Movimento de Educação de Base, para alfabetizar adultos pelo método Paulo Freire. Fiz o curso para conhecer e aprender algo da pedagogia do oprimido (nem sei se já tinha esse nome) que ele propunha. Fiquei conhecendo a experiência em Angicos, o sistema de se trabalhar com palavras ligadas à realidade dos alunos, e a importância de, com eles, distinguir natureza e cultura no mundo em volta, valorizando a ação humana e enfatizando a própria criação de quem estava se alfabetizando. Depois fui dar aulas para operários num prédio em construção em Copacabana, na rua Miguel Lemos. Apresentada a primeira palavra, tijolo (a segunda seria uma expressão, moda de viola, já que entre os alunos havia um animado violeiro) começamos a dividi-la em sílabas e explorar suas possibilidades. 
Mas eu não imaginava como seriam infinitas. De repente, um aluno escreveu uma longa palavra esquisita, parecendo palavra mágica: Tu Luta, Tu Lê. Levei um susto. Não só com a emoção de ver como era rápido, como ele era capaz de criar de imediato um uso impessoal e coletivo para o único pronome capaz de escrever no momento... mas também pela ordem que deu ao seu pensamento. Não se trava de ler para poder lutar, como propunha meu coração de vinte anos, mas de lutar para conseguir ler. A leitura era o objetivo, a meta. A luta era só o meio de chegar lá. 
Nas aulas seguintes, tentamos ir mais longe nessa idéia. Em pouco tempo, na exatidão econômica de suas parcas sílabas, eles explicaram porque esse objetivo era tão precioso: Tu lê, tu já não tem medo. 
Nenhum ensaio que eu tenha lido depois, pelos anos afora, deu conta do recado tão bem, explicando como a dominação se utiliza da falta da leitura. 
Outra emocionante experiência com a palavra, em outro contexto, completa para mim essa função libertária da linguagem, da escrita, da leitura.  É a de Gianni Rodari, na Itália, durante a Segunda Guerra. Jornalista, militando resistência, em certo momento Rodari foi enviado para o interior, por questões de segurança. Começou a trabalhar nas aldeias lutando com sua arma, a palavra. Primeiro, contando histórias para crianças. Depois, para adultos também. Em seguida, estimulando-os a inventar suas próprias histórias. A revoluçÃo que isso causou em suas vidas e as consequências políticas vindas dessa intimidade com a narrativa podem ser acompanhadas em livro, editado em português pela Summus, GRAMÁTICA DA FANTASIA. Em resumo, Rodari concluiu com uma fórmula cristalina: é indispensável que todos façam uso da palavra e tenham acesso a todos os seus usos, não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo. 
No momento como o que vivemos, casa vez mais a tendência é oposta, de não criar suas próprias histórias, não ordenar os próprios pensamentos e se limitar a repetir slogans, chavões e palavras de ordem. (...)
A palavra liberta. A leitura dá argumentos para não deixar intimidar. Lembrar-se disso - e procurar por em prática - é uma bela homenagem que se poderia prestar a Paulo Freire.

(Ana Maria MACHADO. Contracorrente: Conversas sobre leitura e política. São Paulo: Ática, 1999. P.123)

Um comentário:

  1. Muito obrigado por seu tempo! Ele é um ato de amor à palavra e à possibilidade da fala.
    Bjs

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